Humanidades

Educação é terreno fértil para difusão do autoritarismo
Reflexões sobre os efeitos do franquismo no ensino espanhol mostram que receituário da extrema direita é semelhante em todo o mundo
Por Unicamp - 18/09/2024


A Igreja Católica dominou o ensino espanhol ao longo da ditadura franquista: perseguição de professores, redução da rede pública e desigualdade como legado


O enredo se repete em vários países: grupos populistas, na maior parte das vezes identificados com a direita radical, crescem e começam a ocupar espaços na vida social, nos meios de comunicação e, por meio dessa visibilidade, na política. Em sua plataforma econômica, buscam apoio das elites empresariais, associando-se aos agentes do mercado financeiro. No campo social, alimentam narrativas fantasiosas sobre um inimigo que corrói os valores tradicionais da família e da nação. Um dos campos de batalha escolhidos para travar essa suposta luta é a educação.

A forma com que os projetos autoritários avançam molda-se a cada contexto. No Brasil, o cenário contempla desde movimentos como o Escola Sem Partido, que, sob a suposta necessidade de proteger estudantes contra doutrinações ideológicas, faz avançar uma agenda conservadora no ensino, até o projeto das escolas cívico-militares, que transfere a órgãos de segurança pública o trabalho de organização e direção escolar.

Nas aulas do Estado norte-americano da Flórida, por exemplo, é proibido falar de racismo, sexualidade ou outros temas relativos à inclusão. No Estado da Louisiana, também localizado nos Estados Unidos, toda sala escolar deve exibir um pôster com os dez mandamentos bíblicos. Partidos como o Reunião Nacional, na França, ou o Vox, na Espanha, articulam estratégias para afastar das salas de aula frequentadas pelas crianças europeias os filhos de imigrantes.

“Sem dúvidas, trata-se de movimentos que vão deteriorando os princípios básicos de qualquer democracia”, observa Antonio Francisco Canales Serrano, professor da Universidade Complutense de Madri (Espanha) e especialista em temas ligados às relações entre autoritarismo e educação, sobretudo durante o período da ditadura franquista (1939-1975). Ele esteve na Unicamp em agosto como professor convidado da disciplina Autoritarismo e Educação na Espanha do Século 20, oferecida pela Faculdade de Educação (FE).

Em entrevista ao Jornal da Unicamp, Serrano detalha a maneira pela qual aspectos típicos do franquismo, como a forte vinculação com a Igreja Católica, refletem-se ainda hoje na educação espanhola. E também comenta sobre manifestações do autoritarismo reacionário no Brasil, a exemplo da rejeição das ideias de Paulo Freire, defende que a disposição ao diálogo deve partir de todos, da direita e da esquerda, e que interditar debates sobre temas espinhosos transforma-se em um convite à radicalização.

Efeitos

Francisco Franco (1892-1975) chegou ao poder em 1936, após o golpe que pôs fim à Segunda República Espanhola e que deu início à Guerra Civil no país. Líder das forças nacionalistas no conflito, instalou uma ditadura fascista que durou de 1939 a 1975, um regime que se apoiou em valores como o nacionalismo, o anticomunismo e o militarismo autoritário. Uma das instituições aliadas do franquismo e basilar para sua perpetuação foi a Igreja Católica, encarregada da educação no país.

“O Estado se retirou, inibiu-se, sobretudo na educação secundária, e a Igreja Católica dominou o setor. Tudo se privatizou sob o comando da Igreja”, explica Serrano. Segundo o docente, essa representa uma diferença essencial entre o franquismo e os demais regimes fascistas que dominaram a Europa. “Não ocorreu isso em Portugal [com António Salazar], na Itália [com Benito Mussolini] e nem em outro país.”

A instalação da ditadura franquista e a concessão da educação às instituições religiosas implicaram a interrupção de um processo modernizante adotado no país durante a Segunda República. Um ensino laico, público e ministrado por docentes profissionais converteu-se em um ensino religioso, privado, com impacto na redução da rede pública e na vigilância sobre e perseguição de professores quanto a suas filiações religiosas e ideológicas. Com o ocaso do regime, uma série de reformas começaram a ser implementadas. Porém, na avaliação de Serrano, elas aprofundaram as deficiências instauradas pela ditadura.

Ele destaca que a Constituição Espanhola de 1978, elaborada na redemocratização do país, preservou vários privilégios da Igreja Católica que prejudicaram a modernização do ensino. “A própria Constituição blinda os direitos da Igreja e estabelece como princípio educativo o direito dos pais de escolher [se os filhos receberão uma educação religiosa], o que supõe uma redução no direito do Estado de ensinar”, argumenta o docente.

“Primeiro vem a escolha dos pais e, desse direito, deriva uma série de jurisprudências e doutrinas responsáveis por nos obrigar a financiar escolas privadas que, até hoje, na Espanha, são da Igreja”, afirma.

Outro problema apontado por Serrano decorre da reforma educacional implementada em 1990, durante o governo do primeiro-ministro Felipe González. Apesar de ampliar a educação obrigatória e adotar o modelo de escola compreensiva, que preza pela inclusão de alunos de todos os níveis, a ausência de um sistema de avaliação focado em resultados acadêmicos levou o país, na perspectiva do professor, a um cenário de segregação social.

“Há um brutal determinismo social. Os pobres e imigrantes frequentam escolas que são democráticas, nas quais aprendem a ser felizes, mas se tornam incapazes de seguir os estudos acadêmicos. Já a elite branca se forma nos colégios privados, onde podem não aprender a ser felizes, mas onde chegam mais longe em suas carreiras.”


Segundo o pesquisador, essa diferença entre escolas públicas e privadas aprofunda desigualdades que servem de combustível a grupos de extrema direita. “Houve duas ondas de fuga das escolas públicas. A primeira, composta por famílias que queriam uma formação acadêmica mais sólida para seus filhos – e, em vista disso, os colocaram nas escolas privadas. A segunda, mais intensa, ocorreu com o aumento da imigração.”

Bravatas lá e cá

No lugar de políticas e investimentos públicos necessários para o setor, o debate em torno da educação durante a corrida presidencial no Brasil em 2018 teve outro protagonista: as fake news em torno do suposto “kit gay” divulgadas pela campanha do então candidato Jair Bolsonaro. O material, que nunca chegou a ser distribuído nas escolas, tinha o objetivo de conscientizar estudantes do ensino médio sobre a sexualidade e combater a homofobia e outros preconceitos. Entretanto, ao incutir um tipo de pânico moral nos eleitores, tornou-se uma arma poderosa de propaganda contra propostas progressistas para o ensino.

“Na Espanha, esse tipo de ideia surgiu na política por conta do Vox”, afirma Serrano. Criado em 2013, o partido é o representante espanhol do populismo de direita, adotando um ideário comum entre os grupos do tipo na Europa: o conservadorismo social, o euroceticismo e a defesa de políticas anti-imigratórias, voltadas sobretudo contra muçulmanos.

No caso dos espanhóis, uma das estratégias para instilar pânico moral passou pela proposta de adoção do chamado “pin parental”. O nome, inspirado nas senhas utilizadas para impedir que crianças acessem conteúdos violentos ou pornográficos na internet, remete a um suposto aumento do poder de controle dos pais sobre as escolas.

“A ideia do Vox seria um ‘pin parental’ para as escolas, em que os pais poderiam impedir os filhos de terem aulas sobre educação sexual e/ou contato com discussões sobre diversidade de gênero, por exemplo”, detalha. De acordo com Serrano, a educação sexual e os debates em torno dela eram questões pacificadas na Espanha, mas problematizadas uma outra vez pelo partido extremista.

O pesquisador pondera, por outro lado, que muitas das polêmicas insufladas pelo grupo encontram eco nos próprios movimentos progressistas, alinhados à esquerda. “Observo que determinadas pautas levadas às escolas, mesmo aquelas relacionadas a alunos pequenos, se retroalimentam com as ações do Vox”, opina. “São questões de compreensão mais difícil para a população, o que faz com que mais pessoas apoiem propostas como a do ‘pin parental’.”

Serrano enfatiza que seu ponto de vista não vai no sentido de apoiar ou reiterar as posições e os projetos do Vox. Na realidade, o pesquisador vê com preocupação a forma como grupos alinhados à esquerda se colocam no debate público, reforçando estereótipos e falhando na tentativa de estabelecer diálogos.

“Quando os europeus votam massivamente na ultradireita, como tem ocorrido, podemos pensar que se trata de pessoas anormais, reacionárias etc. Ou podemos assumir que não estamos dando um prosseguimento adequado a certos assuntos e que não conseguimos abrir o diálogo.”


Na opinião de Serrano, faz-se necessário encarar as discussões que movimentam a sociedade, mesmo que não se concorde com elas. “Quando definimos que algumas ideias não podem ser discutidas, convidamos as pessoas a votarem no Vox. Elas passam a ver o partido como um refúgio. Se deixarmos a eles cada vez mais espaço, criamos uma base para que esses grupos assumam um suposto papel de representantes do que as pessoas realmente pensam”, reflete.

Apesar de compartilharem estratégias de atuação na pauta dos costumes, os grupos europeus de ultradireita, segundo Serrano, concentram seus esforços, quando comparados com os grupos do Brasil e dos Estados Unidos, na imigração.

“Na Europa, a questão que mobiliza é a da imigração. Quem diz que estamos em uma batalha cultural é rechaçado. Ninguém está em uma batalha cultural. Ninguém está disposto a sacrificar seus projetos de vida ou seu nível de satisfação por um compromisso ideológico”, defende. A questão se reflete nos problemas apontados nas escolas do país. “Esse é um fenômeno que se retroalimenta. À medida que as escolas acumulam alunos com necessidades socioeducativas maiores, o que ocorre de forma cada vez mais intensa, mais a população de classe média, branca, leva seus filhos para as escolas privadas.”


Ao conhecer os debates que a extrema direita brasileira mobiliza na educação, o pesquisador surpreendeu-se ao saber que um dos “inimigos” eleitos pelos grupos é Paulo Freire, um dos maiores pensadores da pedagogia, reconhecido internacionalmente. Segundo Serrano, apesar de não ser amplamente lido na Espanha, como ocorre no Brasil, Freire é um autor respeitado ali e não desperta repúdio entre os grupos autoritários.

“A extrema direita espanhola não se preocupa com pedagogia, mas com a política educacional, com o fato de ela ser pública ou privada. Fora isso, não há debate pedagógico porque não sabem nada de pedagogia.” Apesar disso, Serrano traçou um comparativo interessante, que ilustra bem o rechaço à intelectualidade. “É como voltar a 1939. Os franquistas eram obcecados por [Jean-Jacques] Rousseau. Seu discurso pedagógico era voltado a acabar com os ideais de Rousseau”, lembra.

Rede de pesquisadores

A vinda de Serrano à Unicamp inscreve-se em uma série de atividades realizadas por uma rede internacional de pesquisadores da área de história da educação da América Latina, de Portugal e da Espanha, pesquisadores esses dedicados a estudos sobre as experiências de países que passaram por regimes autoritários e os efeitos disso na educação.

“Tentamos oferecer elementos que permitam uma comparação entre a interferência das dinâmicas autoritárias nos processos educativos ocorridos em momentos de conflito mais intenso, de avanço de experiências políticas que vão na direção autoritária”, explica Maria do Carmo Martins, professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Educação da FE que participou também da entrevista, juntamente com o professor Arnaldo Pinto Junior.

Martins conta que a rede, formada em 2017, nasceu em um contexto internacional de avanço de governos e de políticas de extrema direita em diversos países. Segundo a professora, as experiências compartilhadas com Serrano são importantes para identificar os pontos de contato entre os países e as particularidades de cada um.

“Pudemos entender a lógica de montagem e desmontagem de comissões, os estatutos e a formação do sistema de ensino espanhol, enquanto nós apresentamos como a legitimidade da ditadura civil-militar se construiu no Brasil no período em que durou.” Martins também aponta ser interessante observar como as diferentes experiências envolvem esforços para fazer avançar projetos de privatização do ensino, algo importante para pensar as políticas de educação atuais e para o futuro. “Percebemos similaridades, mas é importante definirmos as singularidades, identificarmos cada agente político e suas formas de atuação.”

 

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